sábado, 6 de julho de 2013

A morte absoluta



Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
a exangue máscara de cera,
cercada de flores,
que apodrecerão – felizes! – num dia,
banhada de lágrimas
nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
a lembrança de uma sombra
em nenhum coração, em nenhum pensamento,
em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
que um dia ao lerem o teu nome num papel
perguntem: “Quem foi?…”

Morrer mais completamente ainda,
- sem deixar sequer esse nome.

Manuel Bandeira

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Os Ombros Suportam o Mundo





Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. 
Tempo de absoluta depuração. 
Tempo em que não se diz mais: meu amor. 
Porque o amor resultou inútil. 
E os olhos não choram. 
E as mãos tecem apenas o rude trabalho. 
E o coração está seco. 
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. 
Ficaste sozinho, a luz apagou-se, 
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. 
És todo certeza, já não sabes sofrer. 
E nada esperas de teus amigos. 
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? 
Teus ombros suportam o mundo 
e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios 
provam apenas que a vida prossegue 
e nem todos se libertaram ainda. 
Alguns, achando bárbaro o espetáculo 
prefeririam (os delicados) morrer. 
Chegou um tempo em que não adianta morrer. 
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. 
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade



A impossível partida




Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade 
E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne indesejada? 
Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos 
Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas 
E se a minha inquietação iria temer a tua eloqüência silenciosa?… 
Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos 
Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável 
Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas... 
…o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face... 
Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério 
Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos 
Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?... 
Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros 
Luzes voando ao vento como folhas 
Nuvens como vagas afogando luas adolescentes... 
Sons… o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida... 
O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço... 
Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas... 
As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma 
Soprando de manso na boca vermelha dos astros... 
Como poder abrir no teu seio, oh noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo 
Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno 
E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?... 

Rio de Janeiro, 1935 

Vinícius de Moraes