domingo, 13 de março de 2011

Psicologia de um vencido


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

sábado, 12 de março de 2011

Já não me importo


Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.

Fernando Pessoa

Sempre Novo

Tudo que é novo só é novo por uns dias ou até querermos substituir por outro,
ou até cansar, isso em curto e médio prazo.
Saber por quanto tempo vamos querer conservar o novo.
 Aprender a dar importância a quem nos dar importância,
não tratar como opção que nos trata com prioridade.
Senão sempre vamos querer substituir, sempre querer o novo,
assim rapidamente perdemos o interesse, se não soubermos conversar ,
ficaremos sempre trocando.
E incansavelmente sempre procurando...
E esquecendo que  dentro de você bate um coração,
que não quer mais chorar ao som de uma triste canção.
Torne o amor antigo sempre novo.

Queila Tavares


sexta-feira, 11 de março de 2011

Noite chuvosa


Fiquei na chuva para esconder as lágrimas que caiam sem parar,
borrando  a maquiagem, borraram meu desespero.
Molhei o travesseiro, passei a noite a vagar,
Não entendo para que tanto desespero,
que noite sem aconchego,que falta que você me faz,
 porque teve que partir no momento que tinhamos muito a fazer,
  ficou uma vida incompleta, parece uma vida não terminada.
Tanto tempo já passou, e ainda não me acostumei com sua ausência,
 de olhar para o lado e não lhe ver.
E quando não chove, não tenho como disfarçar.
Só restaram pedras para contar e bons momentos a lembrar.
Forças que a vida me faz questionar, longe de você.
Queila Tavares

quinta-feira, 10 de março de 2011

Aos bons costumes






As vezes me parece estranho, mais depois aceitável, de como nos habituamos mal rapidamente, ou seria tudo fase, estilo de época. Ou apenas gostamos do que parece estar no ápice do momento. Não estou querendo falar mal, ou parecer ‘’careta’’, mas me questiono, parece engraçado de como é muito mais fácil fazer uma amizade no ‘’mundo cibernético da net’’. É muito mais fácil do que pessoalmente, pois você não daria atenção para uma pessoa citando poesia, ou falando de moda, filmes e etc... iríamos dizer que LOUCOS. Não iríamos sair na rua dizendo você que ser meu amigo? Confirmar SIM ou NÃO. E em apenas um click (sim), acabamos descobrindo aspectos semelhantes, ah mas tem um nome afinidade, ou coisas em comum.
O mais estranho é que às vezes essa mesma pessoa mora no seu bairro, ou na próxima rua, e já se viram varias vezes, ou estudam na mesma faculdade. E nem um momento se falam, e ao se cruzarem são apenas rostos. 

Lembro-me quando escrevia cartinhas para amigas, hoje mando torpedo Email do celular, tudo rapidamente. Nossa, ainda recebo atualizações direto no celular. Que rapidez e ao mesmo tempo acomodação.
Outra coisa estranha, a quantidade de palavras encurtadas que não tem mais fim, estou para colocar um dicionário da internet. E as pessoas são super educadas e cordiais, difícil saber se estar de mal humor, sempre vão te chamar de Amor, linda, paixão, e mais outros adjetivos. Até o nosso chefe parece ser mais gentil, sempre coloca aquelas emotions de risos. Ao mesmo tempo as tornando lacônicas. E depois as melhores pessoas parecem ser as que moram mais longe, não sei dizer se é aquela sensação do difícil e impossível que nos rodeia.
O que na verdade parece que surgiu mais uma nova forma das pessoas se relacionarem, como se fosse o jogo de futebol da quarta-feira, o encontro de amigas do sábado. O mais estranho é que não conseguimos passar muito tempo sem nenhum acesso, chega a ser frustrante não poder entrar no seu email, ver seus recados nas redes sociais.
Entretanto, não podemos descartá-la, pois há aspectos positivos e negativos. Os negativos giram em torno de mau uso, pelo próprio usuário e temos que ter cuidado com perfil falso, fraudes, golpistas, mal uso de informações. Esses são os riscos que temos que passar, são os lados negativos causado pelo mau usuário. 


Agora vamos ressaltar seu lado positivo, além de divertimento, comunicação, fontes de pesquisa e estudo, entretenimento e muito mais, pessoas hoje trabalham com a internet, transações econômicas, bolsa de valores, fornecendo notícias, estudo à distância, tecnologia e até mesmo locais de compras.
Então é impossível pensar em ficar sem uma conexão, mesmo que as vezes seja contraditório, como tudo tem seu lado perverso.


Queila Tavares 


quarta-feira, 9 de março de 2011

Na volta!






fotos: Queila Tavares

Sentir-se amado



O cara diz que te ama, então tá. Ele te ama. 
Sua mulher diz que te ama, então assunto encerrado. 
Você sabe que é amado porque lhe disseram isso, as três palavrinhas mágicas.
Mas saber-se amado é uma coisa, sentir-se amado é outra, 
uma diferença de milhas, um espaço enorme para a angústia instalar-se.


A demonstração de amor requer mais do que beijos, sexo e verbalização, 
apesar de não sonharmos com outra coisa: se o cara beija,
transa e diz que me ama, tenha a santa paciência, 
vou querer que ele faça pacto de sangue também? 



Pactos. Acho que é isso. Não de sangue nem de nada que se possa ver e tocar.
É um pacto silencioso que tem a força de manter as coisas enraizadas, 
um pacto de eternidade, 
mesmo que o destino um dia venha a dividir o caminho dos dois. 


Sentir-se amado é sentir que a pessoa tem interesse real na sua vida, 
que zela pela sua felicidade, que se preocupa quando as coisas não estão dando certo,
que sugere caminhos para melhorar, 
que coloca-se a postos para ouvir suas dúvidas e que dá uma sacudida em você, 
caso você esteja delirando. "Não seja tão severa consigo mesma, 
relaxe um pouco. Vou te trazer um cálice de vinho".


Sentir-se amado é ver que ela lembra de coisas que você contou dois anos atrás,
é vê-la tentar reconciliar você com seu pai,
é ver como ela fica triste quando você está triste e 
como sorri com delicadeza quando diz que você 
está fazendo uma tempestade em copo d´água.


"Lembra que quando eu passei por isso você disse que eu estava dramatizando?
Então, chegou sua vez de simplificar as coisas. Vem aqui, tira este sapato." 
Sentem-se amados aqueles que perdoam um ao outro e 
que não transformam a mágoa em munição na hora da discussão. 
Sente-se amado aquele que se sente aceito,
que se sente bem-vindo, que se sente inteiro.
Sente-se amado aquele que tem sua solidão respeitada,
aquele que sabe que não existe assunto proibido, 
que tudo pode ser dito e compreendido. 
Sente-se amado quem se sente seguro para ser exatamente como é, 
sem inventar um personagem para a relação,
pois personagem nenhum se sustenta muito tempo. 
Sente-se amado quem não ofega, mas suspira;
quem não levanta a voz, mas fala; quem não concorda, mas escuta.
Agora sente-se e escute: eu te amo não diz tudo.


Martha Medeiros

Aquele amor



Ela pertence à espécie de mulheres que
possuem um só amor em toda a sua vida.
Ou amam de verdade apenas uma vez. 
Seria espécie de mulheres ou a maioria assim o é, 
mesmo sem o saber?

Também há homens de eterno amor, 
embora o machismo e as deformações de sua cultura e
comportamento nem sempre os convença de tal.
Ou não convença a maioria. 
Ou será que o fato de serem colocadores de semente
por determinismo biológico os leva a não prestar 
a devida atenção à sua destinação para o amor?

No meio da conversa ela diz, de repente,
que só gostou de verdade de um homem e eis que
vai buscar lá entre papéis amassados, 
daqueles que esturricam o couro das carteiras, 
não um mas três retratos dele, que espalha, qual cartas de baralho, 
sobre a mesa do restaurante. 

E fala dele com a mistura de ternura e tristeza que assaltam
as mulheres que não lograram viver com o seu amor, 
casar-se com ele, ter seus filhos,
viver em função dele e dela, unidos, 
pois esta é a verdadeira vontade e destinação da mulher: 
viver ao lado do verdadeiro amor.


Sim, elas vivem de modo proibido se necessário, casam-se com outro, 
têm filhos, os amam fundamente, 
mas a verdade de seu ser é a do amor verdadeiro, 
até porque mulher vive para amar e por amor, o resto se ajeita.

Podem até deixar seu amor dormitar por anos e parecer serenado.
Volta, porém a qualquer apelo ou menção do nome dele, 
encontro fortuito na rua com um conhecido 
dos tempos do namoro ou da relação.

Como são comoventes e lindas na sua integralidade
bíblica as mulheres quando expressam para os demais ou para si mesmas, 
o amor de suas vidas ou quando consultam, escondido, 
os retratos guardados, recortes, flores secas, 
a memória úmida das restantes lembranças em momentos de silêncio e solidão! 

Abençoados sejam, porque são, 
os homens e as mulheres que na passagem por esta vida 
receberam um dia de alguém, ou deram, um amor único,
original e definitivo. Abençoados sejam e para todo o sempre. 
Como o amor que existe apesar de todas as ternas e dolorosas 
circunstâncias que não impedem a sua verdade mas 
em muitos casos esmagam a sua plena realização.


Arthur da Távola

Mistérios



O amor aparece encoberto por um véu de mistérios
 e sem nenhuma vontade de se mostrar externamente. 
Um dia daquelas em que não sabemos onde colocar o desejo,
 que desperta os sentimentos mais profundos recordações antigas. 
Abrir a janela e esperar o sol raiar. Mas se tudo der errado e a
certeza estagnar vou ousar até a vida duvidar.


Um dia em que não precisa se esconder numa fantasia, 
não precisa fingir uma alegria, 
nem precisa viver um amor de carnaval,
 um amor de fantasia, que a máscaras escondem o que é ser,
 não precisa dizer adeus em cinzas.

Recordar um amor sem ressentimentos, 
e um dia poder dizer que ainda existe um sentimento
 que espera por você , um você sem nome, um você que aparecer. 
Não precisa usar uma máscara, nem palavras repetidas, 
apenas ser você natural.

Queila Tavares

sábado, 5 de março de 2011

Coração é terra que ninguém vê

Coração é terra que ninguém vê 

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri. 

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei. 

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão 

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...


Cora Coralina

Timidez



Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras distantes...
- palavras que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponhos vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão nevegando
nos ares certos do tempo
até não se sabe quando...
- e um dia me acabarei.

Cecília Meireles

Ou Isto ou Aquilo


Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Cecília Meireles

ATENÇÃO AO SÁBADO


Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: 
ao vento sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar,
 vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. 
Domingo de manhã também é a rosa da semana. 
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.



Clarice Lispector (do livro "Para não Esquecer")

sexta-feira, 4 de março de 2011

Detalhes


Detalhes são tipos de estilos.
Quando não se quer, detalhes são desculpas.
Desculpas de raça, cor, crença, distância e conceitos.
Desculpas de pré-conceito não se perdoam.
Talvez se perdoe, só para mostrar que não tem pré-conceito de perdoar.
Detalhes mesmo tão pequenos, entre nós dois são coisas bem grandes 
e mesmo que seja para esquecer, os detalhes são em vão, 
 e toda hora se vai e fica. 
É uma inconstância, detalhes costumeiro.
Quando não se ama, detalhes são barreiras.


Queila Tavares

quinta-feira, 3 de março de 2011

Por ser mais um dia...


Estou numa felicidade constante, apesar de às vezes parecer uma montanha russa,
Um carrossel de felicidade, um drinque bem gelado,
Um beijo de despedida, uma música repetida.
Hoje estou feliz por satisfação, por um amor correspondido, não somente por ter recebido flores ou por esta próximo de uma primavera.
Cada dia sinto uma felicidade diferente, e como se cada dia pudesse respirar um missão cumprida, um dia bem vivido, mesmo que seja numa sala de escritório, por passar o dia numa agonia que parece não ter fim, e no final do dia vem uma enorme satisfação.
Uma mistura de sentimento,
como se o dia amanhecesse sorrindo e dizendo: - hoje é seu dia!
E no final do dia, mesmo depois de uma chuva, chegando em casa, a uma satisfação por ser mais um dia.

Queila Tavares

quarta-feira, 2 de março de 2011

Resplandecer

Mesmo que eu não ti veja mais
Mesmo que o tempo pare pra nós
Mesmo assim sempre deixarei
O meu coraçao entregue em tuas mãos

Mesmo assim vou sentir
Mesmo sem ter você
Que é pra sempre o que ha em mim
Que resplandece em você
Resplandece em você

Catedral

Por não estarem distraídos



Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos. 



Clarice Lispector

terça-feira, 1 de março de 2011

A arte de ser feliz



Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Cecília Meireles

Asa de corvo



Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa própria casa...
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto á brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
E com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...
E ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte - a costureira funerária
- Cose para o homem a última camisa!

Augusto dos Anjos